Na rua da União, Santiago preparava-se para sair. Tinha uma reunião na sede do mais novo periódico da cidade, “ O Recife”. O folhetim havia se transformado em um jornal diário, onde o jovem poeta e alguns outros colaboradores escreviam resenhas sobre livros , tratados filosóficos, a política do Imperio e da Província, além de uma seção dedicada exclusivamente para a literatura local, contos ou poesias. Não havia qualquer impedimento político, religioso, social para as participações. Conveniou-se entre os que faziam o trabalho que todas as opiniões poderiam ser dadas, desde que com fidedignidade jornalística e conteúdo instigante e questionador. A proficuidade e o crescente numero de assinantes e comentários em toda a cidade fizeram com que o jornal se tornasse assunto corrente nas bocas recifenses, e insônia para os grandes editores e mencionados no periódico. À noite, iam ter nos bares as iluminações necessárias para escrever. Santiago era o mais ávido dentre eles, consumindo-se prazerosamente em discussões, pautas, em produzir material para ser impresso. Como disse, isto já estava incomodando certos setores da sociedade local, bem acostumados com uma forma mais amena de ler nos jornais os assuntos do cotidiano. O Comendador Demóstenes Sobral, detentor dos jornais “ Gazeta Pernambucana” e “Diário de Notícias”, era o grande mentor de tudo isso. Este homem, poderoso e com influências em toda a província e quiçá em todo o Império, era responsável pela formação da opinião pública local. As tiragens destes periódicos eram gigantescas; as bancas, repletas de gente comum ou diferenciada, eram lotadas daqueles que faziam questão de acompanhar o que se passava na cena recifense através destes veículos, adquirindo este conteúdo. Seus colaboradores eram, quase sempre, grandes comerciantes, advogados de renome, políticos e até a Igreja. Tudo era feito para manter “ uma estabilidade social que, em muitos lugares,não é possível sem uma imprensa atuante e solidária com os anseios da classe dominante”.Foi num destes encontros que o assunto abordado foi diferente...
- Senhores, estamos diante de dias preocupantes. É do conhecimento de todos que um novo periódico diário, um tal "O Recife". Está nas ruas, atraindo a atenção das pessoas. Seus idealizadores? Jovens artistas e universitários ociosos, que resolveram brincar de jornal, bem aqui, em nossa cidade. O que chama a atenção é a forma como este é escrito. Indecências, atrevimentos contra autoridades reconhecidas do Império, incitação ao livre pensamento, à desordem e até ao ateísmo. Sabemos como o povo se comporta. São tão libertinos quanto estes que os instigam. Continuando desta forma, certamente tudo estará perdido. – disse o senhor Plácido Alves, comerciante de tecidos e membro da junta comercial.
- Este é o maior problema... o ateísmo... estes jovens abomináveis vêm questionando as verdades sagradas da Santa Sé, com o intuito de envolver nossa doutrina em diminutas proposições humanas. Esta forma suja que escrevem, sem o devido cuidado com as coisas santas, já irritou até o bispo. – o padre Coutinho, diretor do Colégio Sagrado Coração.
- Isto não vai ficar impune. A confusão está instaurada em nossa cidade com a publicação desta afronta; temos os nossos meios para deter este avanço de imoralidade e mentira disposta por estes lascivos. Deixem estar. – disse o comendador Demóstenes.
“O Recife” ficava na Rua das Calçadas, num sobrado simples. Estava desativado há alguns anos e era perfeito para a montagem de uma pequena redação, no primeiro andar, e prelos para impressão dos jornais e uma pequena expedição no térreo. Santiago estava à frente da idealização e do projeto, sempre discutiu com os amigos acerca da criação de um veículo que fosse moldado segundo os ideais de liberdade de expressão e pensamento que não se achava em Recife. O objetivo, dizia ele, era “ desmascarar as velhas toupeiras, retirar o mofo a muito impregnado da notícia local, maquiada e sempre revisada para beneficiar a uns poucos caudilhos da política ou da religião”. Viam naquele esforço uma forma de liberar mentes, não um meio de ganhar dinheiro. A renda do trabalho era destinada para a aquisição de novo maquinário, matéria-prima e pagamento dos funcionários. O valor do periódico era acessível ás classes mais baixas, com isso o povo tinha a oportunidade de adquirí-lo.

- Parece-me que as coisas estão esquentando, Santiago – disse Sotero. Há boatos por toda a cidade de que nosso jornal está ferindo os brios de alguns homens de poder. Eu comprei o último número do Diário de Notícias e veja o que está escrito já no editorial: “ À população e aos homens de bem, convêm alertá-los sobre o absurdo que está sendo colocado na cidade há alguns meses sob forma de um periódico descuidado chamado “O Recife”. De imaginação pérfida, este jornal vem sendo publicado diante de nós com as mais descabidas mentiras e licenciosidades nunca antes imaginadas nesta capital. Jovens universitários, sem nenhuma experiência jornalística, aproveitando-se de suas imaginações férteis e hormônios excitados, distribuem farpas para todos os lados, sem a devida investigação, que é praxe nos meios de comunicação sérios. As autoridades, as legislaturas, o Presidente da Província, o Clero, todos são alvos desta súcia torpe e insana que brinca de notícia, como se isso de instigar fosse algo correto e ordeiro. Com suas palavras maliciosas, zombam da boa família, dos costumes recebidos pelos nossos pais, da civilidade e principalmente das instituições honradas do Império. Até o Imperador não fica de fora! Ateus que são, fazem pouco daquilo que consideramos sagrado, dos sacerdotes que são vitimados por suas idéias iconoclastas e hereges. Qual o propósito de tamanha fúria, tamanho descontrole? Uma ordem estabelecida não pode conceber esta afronta contra a moral e a verdade. Esta barbárie verbal, direcionada aos que sempre foram a favor da liberdade e da igualdade não pode ficar impune. Com os editores do “O Recife”, a palavra.”

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