No dia seguinte à publicação daquela matéria, a cidade acordou com esta réplica escrita pelo editorial do “O Recife”:

“Cidadãos do Recife,
Certamente respiramos novos ares. Nossa cidade, dominada sempre que foi, durante séculos, por uma aristocracia ensimesmada e repleta de más intenções, vem sofrendo duros golpes. A imprensa, coisa que tratamos com o maior cuidado e liberdade, quando não usada com esmero serve muitas vezes para este propósito malévolo: a castração de idéias, de opiniões, de sentimentos muitas vezes verdadeiros e sinceros vindos da sociedade, desprezados pelos grandes e poderosos, estes mesmos que sempre estiveram no topo. Isto reflete a necessidade de mudanças urgentes nos mais variados campos do convívio humano; nossa política é atrasada e crua, somos decrépitos caudilhos em meio a regimes de governo mais modernos e direcionados para uma maior consciência democrática. Obviamente, e os senhores devem concordar conosco, num ciclo de poder, aqueles que estão ameaçados fazem de tudo para se manterem a todo custo em suas cômodas posições. E quanto sofrer é gerado para que esta manutenção se concretize! Nós, os leigos, estamos largados às ruas, pedintes, maltrapilhos, vivendo na mais degradante miséria, sentindo na carne e no estômago o fardo pesadíssimo do Império caduco, da morbidez de uma nobreza inativa, repleta de títulos nobiliárquicos, remontando os idos da Idade Media com a pompa dos cavaleiros e das donzelas, dos reis poderosos e do Clero presente. Aliás, o Clero mantêm esta aparência altiva, grandiosa, vista nos templos nossos do Recife e de outras províncias, a renovação constante dos clérigos, todos muito moços, havendo ainda aquela detestável opção por parte das famílias de encerrar os pobres mancebos nas masmorras dos seminários e conventos, talvez receosos em seus desejos adolescentes. Fachada ignominiosa, podre, vil, onde o amor e o perdão, condições impostas pelo Cristo, de longe passam pelas portas dos monumentais palácios episcopais. As autoridades eclesiásticas, estas servem apenas de figuração a uma ordem metafísica duvidosa,sem escrúpulos, sedenta por poder e domínio, quase não se mexem; se vêem um irmão a necessitar de auxílio, nem ao menos o olham, seguem seus caminhos olhando para cima, para os santos e papas que já morreram, invejando-lhes a condição, pois não tinham a necessidade de cruzar com espécies tão abjetas e torpes quanto os mendigos. Nós, editores do jornal “O recife”, não estamos interessados em repudiar a fé, algo tão presente nas mentes e nas tradições populares, o que rejeitamos com todo o vigor é a capacidade esdrúxula de alguns párocos de enganar, de vilipendiar a convicção de muitos, tornando-os vitimas de suas próprias ilusões errôneas, não por conta dos fiéis, mas sim devido à falta de caráter e de responsabilidade de Roma em não rever certas condutas, certos trejeitos hediondos. Nossos políticos não se saem melhor. Servis homens, entregam-se ás facilidades da vida nobre, tendo um imperador medroso como moderador de tudo. Estes, donos de vários periódicos de nossa região, usam estes veículos das maneiras mais extravagantes em nome de suas ambições. Na surdina da noite, trabalham para afundar ainda mais nossas vidas, não permitindo que participemos das decisões, das riquezas e da fartura que buscam. Amigos, somos brinquedo nas mãos destes vilões, e, por estes dias, o nosso jornal vem sofrendo as maiores represálias por não compartilhar com tamanha sujeira, imundície já impregnada nestes indivíduos; somos pequenos, estamos apenas em nosso alvorecer, mas já incomodamos, já estamos em pleno campo de batalha, denunciando as vilanias , as deturpações, mostrando os problemas e ajuizando soluções, pois é disto que se trata um meio jornalístico serio, preocupado com o cotidiano, olhando como aves de rapina para cima, sempre avante, envergando novos vôos. Conhecemos o povo do Recife por afinidade verdadeira. Somos também vitimados, somos também humilhados, temos os mesmos problemas, os mesmos assuntos em comum. Também somos povo, o sangue que corre em nossas veias, é o mesmo que também vibra em vossas artérias. Recife é nossa! Esta cidade, que acolhe bem aos que chegam, que é mãe dos desvalidos das ruas, este que é o mais belo rincão do Império, não deve ser palco de torpezas e de mentiras oriundas dos poderosos donos da moral e dos costumes mofados, insanos e antiquados que vivenciamos hoje. Os senhores, que nos prestigiam com a vossa atenção e credibilidade, entendem o nosso diálogo, entendem a nossa indignação em sermos vilipendiados pelo simples fato de trazer o novo, aquilo que é do interesse comum, as discussões, os questionamentos, a diversão, por que não? o homem necessita de gozo, de arte, de música, de verso e prosa, necessita disto pois estas considerações fazem parte de nossa vida, a complementa. Somos banalizados, mas acreditamos que os leitores desta cidade hão de fazer jus à coerência e ao bom senso que sempre detiveram. Obrigado a todos!” – Santiago Azevedo & associados.

- Ah, matreiro! Pensávamos que ias ficar lá em teu quarto, macambúzio, chorando pelos cantos, mas a situação é bem diferente. Vem , assenta-te conosco! – Sodré, um amante da poesia e fiel amigo de Abelardo.
- Obrigado, Sodré. Realmente cedi ao apelo da vida, esta que tanto me faz sofrer por seus reveses, mas que sempre traz-me outras compensações. Estar com meus amigos é realmente um amenizar constante.
- O que tens feito em tuas andanças literárias? – disse outro amigo próximo, Plínio Moura.
- O de sempre, Plínio. Escrever poesia não é tão simples como aparenta. Quando não há versos na cabeça os dedos doem, os olhos se negam a observar o papel, as pernas urgem uma saída estratégica. Não existe hora, lugar, ocasião ou vontade, quando este senhor do poeta se aproxima, logo sabe-se pelo seu aroma, que pode ser pútrido, anunciando algo desolador, uma visão de caos e lamurias, ou um amor perdido e irrecuperável, ou vir de maneira olorosa, sutil, quando as vertigens do melhor do homem se expressam. Poesia é perder-se na imoralidade de não ter hora. Aliás, o que pensam de mim as pessoas desta cidade, Plínio? Faço de ti o meu Pedro... o que pensam de mim?
- Desde aqui da Praça Joaquim Nabuco até os rincões do cais do Apolo tua poesia tem sido comentada. Andam a falar de um andarilho, muito belo e também talentoso, vindo de Salvador e perdido em Recife, em meio aos fétidos becos dos bares e cafés, sempre embriagado, sempre falante, a versar coisas muitas vezes incompreensíveis, mas belas. Isto eu ouvi dizer de ti.
- Isto é descabido demais. Acaso produzo textos incompreensíveis? Sim, deve haver incompreensão nas mentes beatas, nos cérebros atrofiados dos tolos sem ilusões, das matronas cheias de si. Isto que digo é incompreensível realmente. Não entendem o que o bardo canta? Os ouvidos têm cera moralista? Se tiverem, afastem-se! Retorcer as palavras, entender o que não se escreveu... Recife está assim tão simplista? Gregório! Velho safado! Tua alma maldita ainda paira por estas ruas? Morrestes aqui em meio aos mangues... ainda perdes o teu tempo nestas ilhas repletas de moscas? – Abelardo gritava, exasperado.
- Acalma-te, homem! Não entendem teus propósitos, paciência! Tens muita coisa escrita?
- Alguns cadernos, sim. Tenho fome, Plínio. Estes versos poderiam, pelo menos, ajudar-me a ingerir um bocado de pão com um copo de água, mas nem isso... e tudo por conta de comentários esdrúxulos como estes... também como, preciso comer...
- Tragam alguns pães, presunto defumado e uma garrafa de vinho. Ficarás bem, Abelardo, tua arte é grandiosa, somos teus admiradores, não? Estás entre amigos. Anda, onde estão os pães?
- Agradeço a todos vocês. Sodré, companheiro de longas discussões, Plínio, amado agora e estimado para sempre, todos aqueles que acompanham esta carcaça. Pretendo mudar-me mais uma vez.
- Para onde pensar em seguir? Para muito longe? Não temos ouvidos o suficiente para ouvir-te se fores para ale-mar ou outra província. – bradou Sodré.
- Vou-me embora para Olinda. Estive lá a convite de um professor que viu minhas declamações aqui no Recife, no café Solaris. Ele prontamente disse-me que, acaso fosse à Olinda, não deixasse de ir ter com ele. Fui. Ele mostrou-se um excelente companheiro em vários assuntos... se é que vocês podem me entender...

- Isto é bem o teu jeito, Dioniso!! He He He. Conta-nos mais.

- Este professor, de quem falei a pouco, chama-se Tomás Pinheiro. Ele sempre está ás voltas pelo recife, segundo ele “ para apreciar in loco o que vejo apenas de longe, da cidade alta”. Sua casa é modesta mas bem agradável, fica no cume da ladeira da Misericórdia, de lá é possível ver o recife, belíssimo, à noite. Neste ambiente furtivo, bucólico, as ambições sexuais afloram de assalto, e sabendo bem que ele, já de meia idade, olhava-me suspeito, não tive qualquer dúvida, abordei-o e não me decepcionei. Faltava apenas a poesia neste instante, e ela veio, mas sem qualquer relação com a noite feliz que tive. Vi, bem cedo, em frente a igreja da Misericórdia uma multidão de fieis indo tomar o seu café diário das mãos do pároco, aquela misera óstia, que para muitos é o próprio Cristo. Consternei-me diante daquilo. Eram muitas as almas que iam àquela hora da manhã ouvir os repetidos ofertórios e ladainhas oferecidos a tanto sacrifício pastoral. Não tive qualquer dúvida, era a hora de relatar aquilo; não havia ainda me questionado sobre este assunto, e naquele momento eu estava tão leve, tão absorto em sentir meus músculos ainda contraídos, ainda envoltos em prazeres aos quais havia me deleitado, ter aquela visão fez-me entender que posso usar esta senhora adorável – a poesia – como instrumento positivo de mudança, como agente revelador de emaranhados obscuros impostos pela superstição. Tomás estava ao meu lado. Falamos um pouco sobre o assunto e depois descansamos. À tarde, logo após o almoço, pari estes versos:

“Quem olha o cristão romano,
Não se apercebe do que ele realiza
Em suas missas repletas de gente,
Ocorre a cerimônia
Da ingestão divina.

Deus, criador do mundo,
Padece em bocas cheias de cárie
Das beatas matronas,
De várias formas Ele é mastigado
Engolido ás pressas, pois a fila é grande.

Um simples lembrete daquele que na cruz tudo sofrera,
Se transforma num espetáculo miraculoso
Nas mãos dos sacerdotes rotundos.

Grande ápice do encontro,
Trigo amassado vira deus
Vinho ou suco de uva barato,
Substituem o sangue caro ofertado
Num emaranhado dogmático,
A tolice instalada.

Lá fora acompanho a fome dos mendigos,
Que lá dentro da capela estão a comungar
Felizes por ter a Cristo no estômago,
Seu corpo na boca, a desfazer-se.

Sacerdotes contentes por exercerem
Os mistérios santos, tolice velada,
E Deus, pobre criador, a perder matéria diariamente
Nas bocas cristãs cheias de cárie.”

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