Abelardo Souza Dantas era soteropolitano. Aliás, era a única coisa conhecida sobre ele. Aportou no Recife há alguns anos e, aqui chegado, vivia pelas pensões da cidade e em outros quartos das pessoas que ia conhecendo. Rapaz de olhos provocantemente amendoados, robustez física e linguajar erudito, era facilmente percebido por todos; andava ao seu modo, e como as circunstâncias assim o delegavam: calças de um envelhecimento notado, sobretudo roto, camisas amassadas e igualmente velhas e botas surradas pelo contínuo caminhar pelas ruas. Tinha cabelos belíssimos, realmente contrastantes com sua situação paupérrima. Seu rosto era de uma beleza ímpar. À noite, gostava de circular pelas ruas boêmias com diversas companhias diferentes... diversos rapazes e moças diferentes – estes, perturbados com o chamativo jovial e belo daquele rapaz. Os bordéis e cafés eram seus locais de encontro e relações furtivas, aí realizando contatos os mais diversificados, com artistas, atores, músicos, poetas, putas, traficantes de raxixe e outras drogas. Tinha no sexo uma compensação pelos dias difíceis, e aproveitava cada instante de prazer de maneira solene. Os rapazes eram o seu melhor passatempo. Dizia que “a mocidade e a virilidade dos efebos recifenses eram tão gloriosas e febris quanto os da Grécia de Platão ou a Roma de Calígula”. Não dispensava estes corpos que eram tão familiares quanto os dele mesmo “posso tocá-los como bem entendo, pois em tudo se parecem com o meu”; seus relacionamentos eram sempre intensos e provocativos, e ele absorvia tudo, como uma esponja em meio à água derramada. Neste estado de coisas sentia-se revigorado, gostava da sensação do absoluto, da liberdade criadora, do esforço por embriagar-se cada vez mais, de deitar cada vez mais. Naquele torvelinho de gente trôpega, ele via seu lar verdadeiro. Sua juventude o concedia força suficiente para a empreitada, esta sempre renovada a cada noite, e a todo tempo. Considerava-se poeta. Tinha sempre alguns escritos consigo, e imaginava sempre outros. Recitava seus versos na noite, por onde andava, para os amigos, nos quartos, para os amantes, com vontade e paixão. Era realmente a sua arte, o seu quinhão dado pelas Musas para o deleite dos que tinham ouvidos para ouvir. Romântico, sarcástico, imprudente, ate mesmo herege, ele criava a bel prazer sem conveniências, sem retoques, sem rotulações estéticas, fazia como vinha em sua mente, versos livres e cheios de força, ímpeto vertendo de sua voz e de seus dedos a cada verso composto e dito. Certa noite, com convivas em um café perto da pensão onde estava naquele momento, recitou o seguintes versos:

"Eis que agora mesmo vi uma dama tão distinta,
Que andava apressada, como se ocupada estivesse.
Olhou-me fixamente, e eu a fitei de pronto,
Ela, em seus trajes galantes,
Eu, andrajoso e sedento.

Já percebida de que a olhava com ânsias de desejo,
Não perdia a elegância, sóbria parecia,
Com a máscara da candura enganava tolos amantes,
Despia-se diante de mim em excitação plena.

Quis aproximar-me, e assim violar preceitos sociais
Inquebráveis nos negócios, na fé e nos chás da tarde
Mas não no amor, onde todos somos apátridas, hereges,
Onde todos pecamos com vontade inculpável.
Sendo pobres, ricos, cegos ou coxos.

Senhora distinta e bela, sei o que pensas...
Gostas de imitar os eqüinos em teu prazer carnal,
Seios fartos, ancas brancas, clitóris umedecido,
Boca sugadora, carnuda e violenta.

Tens tua face carregada de luxúria inflamante,
Desejas meu falo, quero dar-te...
Pretendes meu corpo nu, ofereço-te...
Uma escravidão concedida, para num momento usufruí-la.

Pensas em teus conceitos nobres,
Não te deitas com mendigos
Preferes os fidalgos, com suas tépidas investidas
Sempre atrasados, frios, desconfiados.

Não! Adoras o frenético movimento,
Do completar do teu vazio entre tuas pernas,
Abertas, a convidar
A qualquer um que te desperte gozo,

A verdade? Queres os rôtos,
Queres provar o que vem da imundície das fétidas ruas,
Tua curiosidade se alia a teu desejo lancinante
Pretendes receber quente esperma, oriundo dos lacaios da rua.

Tu olhas para mim, vês-me sujo, maltrapilho,
Espojar-te-ias em mim como abelha no pólen
Como cadela em pleno cio, a banhar-te em meu sêmen,
És bacante, teus olhos dizem-me.

Aceita-me em teu séquito de miseráveis,
Eu comeria-te inteira, teu amouco devorador
Antropofagia permitida, renovada a cada olhar,
Deseja-me, posso ver... já não és tão casta para mim.

Vem, aguardo-te!
Leva-me em teus pensamentos, sonhos banhados em suor,
Permita que sacie tua fome desesperada,
De um macho viril, a te contorcer lancinante.

Eis que agora vais embora,
E logo vem mais uma descendo as ruas, donzela recifense,
Nova pulha, novo engodo,
Membro rijo, espero esta que preencherá o vazio

Deixado por aquela, que no ajeitar do vestido
Continua a olhar-me...”

- Ahh, Abelardo, praticas bem a alquimia verbal, tens no sangue estes versos que nos atingem com tamanha avidez. Recitas outro! – disse um dos presentes.
- Vejo que gostaram. Vocês são de minha estirpe, apreciam os gostos terrenos com a propriedade que estes requisitam, e a poesia faz parte destes deleites. Onde está o Meira?
- Foi ter com uma dama, á rua... He He He He
- Devasso! Estava comigo aqui, a bolinar-me, antes de recitar, e agora, em minha ausência, aproveita para caçar... maroto, muito maroto este meu amigo! Bem, tenho mais comigo destes episódios poéticos, mas não serão ditos hoje... a noite inicia-se, e temos que sair à procura de inspiração, de ambrosia líquida e esfumaçada, vinda das garrafas e dos cigarros. Certamente os senhores terão a oportunidade de conviver com mais estórias destas.
Saiu depressa a procurar Meira, enraivecido por tal afronta. Este rapaz era seu amante. Filho de um grande comerciante local, vivia pelos bares e cabarés usando seu dinheiro para entorpecer-se com raxixe e absinto; estudava direito na Faculdade do Recife e era conhecido pela sua facilidade em arranjar e desprezar amantes. Quando finalmente o encontrou, estava em um beco com uma mulher, que lhe conferia oralmente os atributos do seu sexo. Disse-lhe:
- Meira, nem ao menos disseste para onde irias. Se me tiveste dito que irias despejar teu sêmen na boca das meretrizes da cidade, eu bem entenderia, já que é isto o que sabes fazer de melhor, não é?
- Ora, Abelardo, não estragues este momento... ahhh, um pouco mais forte, sim? Ahhh , desta forma está excelente... boa menina! Boca suave tens... sugas-me deliciosamente...
- Não faço isto para ti todos os dias, maldito? Não sugo o resto daquilo que desperdiças com estas? Não te culpo, és pervertido como eu mesmo. Sou eu o meu próprio algoz... tenho o péssimo habito de amar... de doar-me aos mais incautos amantes... deixo-te a terminar esta sujeira... depois, num movimento involuntário, pergunta: Vens á pensão hoje?
- Creio que não. Ahhh... querida, foste magnífica! Vejo-te depois, certamente hoje entraste em meu rol de amantes. Não te esqueces de mim? Hum? Limpa-te... isto. Vejo-te depois. Abelardo... preciso conversar contigo.



Saíram dali e foram para o café, onde o restante dos amigos ainda estavam. Os dois, reservados, dialogaram por horas a fio, até o momento em que Abelardo, com fúria não conhecida, desfere um golpe, munido de uma garrafa, contra Meira. Este, caído e sangrando muito, é retirado ás pressas. O agressor, atônito, sabendo o que tinha feito. Sai fugido e naquela noite não é mais visto. Alguns dias passaram-se após aquele episódio, e Abelardo não foi encontrado desde então. Havia saído da pensão onde estava, à rua do Hospício, indo para o outro lado do rio, estabelecendo-se na Rua dos Judeus. O dinheiro estava começando a escassear. Não possuía trabalho, achava a vida proletária um absurdo, um não-viver, uma negação à vida e à plenitude deste movimento. Recusava-se a aceitar aquela que era a fatalidade das gentes – o trabalho – fruto de ânsias demasiadas, expectativas no futuro... o futuro... quem poderia vislumbrá-lo? Adivinhá-lo seria incômodo e triste; vidas sãs seriam desgraçadas por tais visões do porvir, tudo isso, o porvir, trazia para o homem esta necessidade do subsistir, do labutar, do persistir em morrer diariamente por uns míseros tostões. Odiava o trabalho. em salvador havia trabalhado como tipógrafo em um jornal onde dormia, e com esta atividade pagava sua estada ali e algum alimento escasso. Aprendeu a racionar os víveres necessários desta maneira sórdida; em troca de pão, apertava o prelo diuturnamente. O homem, em sua visão, deveria trabalhar quando esta fosse sua vontade íntima, realmente determinação psicológica, natural, e não uma imposição cruel e abjeta. Quando, nas manhãs de expediente para alguns, acordava tarde e via de sua janela as pessoas a ir de um lado para outro, apressadas, atrasadas, sentia prazer em estar em condição oposta, acordando àquela hora, depois de uma noite de esbórnia. Encontrava-se muitas vezes em grau avançado de felicidade em perceber que, naquele momento, não precisava dar explicações a nenhum patrão sobre algum eventual atraso, ou pedir de maneira humilhante uma saída para resolver assuntos particulares, sendo agredido em ambos os casos por alguém que achava-se dono da vida, dos anseios, das vontades , das mentes das pessoas. A Rua dos Judeus era agradável. Abelardo estivera ali várias vezes, trafegando pelos bares e becos; as pessoas do lugar não o conheciam, e isto era bom, poderia trazer para seu quarto suas “distrações anti-solidão” como ele mesmo gostava de dizer. Meira ainda estava fixo em suas idéias... depois de tantos momentos de catarse mútua, de apego, de sentimentos maravilhosos, o rapaz simplesmente sai de cena e o abandona como a um cão desvalido. Ele já deveria estar preparado para as desventuras do amor, não era mais um inocente iniciante nesta arte, foi pego desarmado por este turbilhão avassalador de sensações produzidas à revelia, sem nenhum escrutínio seu. Amava Meira de forma incondicionada, sem máscaras, sem dissimulações. A contrapartida? Este era o seu pior erro. Esperar tamanha vontade de amar do seu companheiro infiel, tirano, ás vezes agressivo e covarde. Sabia que tinha amantes várias, muitas delas convivas em sua mesa ou em eventos orgíacos que se davam. Mesmo assim, mesmo com estas circunstâncias tão dúbias em relação ao amor, aquele egoísmo e possessão do outro que tanto atrai ao maior dos altruístas, mesmo com estas permissividades, Abelardo o amava; não suportava sua ausência quando esta se tornava penosa e quase um abandono, ardia em febres dionisíacas quando, ao lado de seu Heféstion, satisfaziam-se em completa homogeneidade, em confusão de corpos quase fundidos pelo prazer. Hoje, inconfundivelmente sozinho, as reminiscências apenas trazem o vácuo, a sensação do um, de estar um apenas. Isto ia passar com brevidade, afinal, sua juventude estava em seu clímax, seus membros ociosos pediam articulação, exercício! Ele estava disposto a apagar este passado utilizando-se do presente em sua plenitude.

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