- Dei-lhe o nome “Ode à Teofagia”. Os cristãos sempre lembravam a nossos antepassados indígenas, que comer outro homem era pecado, só não os revelaram que não era proibido comer o deus branco, diariamente, nas missas. Um viva ao paradoxal! Sem ele, é impossível fazer poesia!
Abelardo sentia-se outro. Um sentido novo havia se apresentado, e também um novo romance, tudo de maneira tão repentina, mas e modo igualmente impetuoso e voraz, que ele agora estava radiante. Mesmo com as serias dificuldades que atravessava naquele instante, ele estava confiante. Sua arte estava à serviço da denúncia da realidade, esta tão angustiante para alguns, plena para outros. Iria para Olinda, estava decidido.


Santiago chegou ao seu quarto de madrugada. Não estava sozinho. Ao sair do jornal depois das dez, resolveu, juntamente com Sotero, Augusto e alguns funcionários tomar algumas cervejas no cais do porto. Contumazes nesta prática, os amigos sempre que podiam estavam a beber, usando este tempo para saciar a sede e observar as paisagens que somente o Recife possui à noite. Augusto disse que “em nenhum lugar no Brasil a noite é tão peculiar, tão chamativa”. As ruas estreitas do bairro de Santo Antônio tinham ares daquelas ruas medievais... curtas, vazias; sobrados inquietos escondendo vidas em seus interiores , que àquela hora estavam a dormir, ou a providenciar braços para o regime, tetas para o regime. Caminhar por aquelas ruas na madrugada significava, na visão de Santiago, andar diante de uma platéia incógnita, ali presente mas calada, pia. Chegaram ao bar e logo avistaram algumas moças freqüentadoras do lugar. Sotero identificou algumas, chamando-as para a mesa e pagando-lhes uma bebida; Augusto, sempre calado mas atento, espiava de longe uma outra morena, que servia os fregueses do recinto; Santiago preferiu comer alguma coisa e beber, não estava esperando aventuras para aquela noite...
Algumas horas depois, o bar estava fechando, apenas a mesa onde Santiago se encontrava estava ainda ativa. Sotero e Augusto estavam ocupadíssimos, e apenas o poeta mantinha-se solitário. Quando deu por si, uma apetitosa morena vendendo flores no café ao lado. A noite era para ele um momento de vislumbrar estas vidas que usavam a penumbra dos candeeiros e o burburinho das gentes embriagadas para não revelarem seu brilho, temerosas dos contratempos que este brilho pode trazer. A mulher, que deveria ter uns 23 anos, era belíssima, espécime absolutamente rara , morena e de feições magníficas, trazendo consigo um buquê com algumas flores, em sua maioria rosas e jasmins, delicadamente embaladas. Tinha realmente um aspecto sofrido, mas que era facilmente transfigurado ao menor sorriso, ao menor levantar de cabeça. O encanto daquela pobre vida, que em meio às pilhérias e acenos indiscretos dos homens dos bares tentava sobreviver vendendo suas flores arrebatou Santiago, não permitindo defesa. Este, num misto de vislumbre e revolta por tal condição, finalmente reuniu forças e chamou a jovem. Esta veio.

- Senhor, não quer comprar flores para a sua pretendente? – disse docemente a florista.
-Por favor,sente-se, vejo que estás cansada do trabalho. – disse Santiago.
-Não posso aceitar o convite. Estou trabalhando, como bem disse o senhor, e não costumo assentar-me com estranhos.
-Ah, sim, claro, perdão. Fui rude em não me apresentar. Santiago Azevedo.
-Prazer, chamo-me Antônia. Preciso ir.
-Não, quero dizer, fique, eu compro todas as suas flores.
-Mas aí não parecerá trabalho, mas já que o senhor comprará todas as minhas flores, sento-me.
- Não pretendo ser deselegante com você, apenas percebo seu cansaço e pretendia pagar-lhe algo para beber, talvez comer.
- Sim, aceito.
Santiago não pode deixar de perceber o corpo da bela Antônia. Estava com um vestido de alças, seus seios á mostra, médios... mamilos rijos pelo frio da madrugada, não poderia deixar de perceber, mesmo com tantos pensamentos condenatórios; estava alto pela bebida, e isso o deixava ainda mais excitado com aquela visão angelical.
- Onde você mora, Antonia?
- Moro nos casebres á beira do rio. Somos eu e mais uma tia, que também vende flores. Dizia isto devorando pão e algumas fatias de defumado e chá .
- você não teme as ruas?
- Sim, as temo. Mas o que devo fazer? Não tenho posses, nem dotes, preciso comer. Com aquilo que ganho vendendo estas flores como para no outro dia trabalhar para comer novamente, esta é minha sina. Os senhores que estão aqui não podem dizer o mesmo, são fidalgos, gente importante. Mal nos percebem, a nós os moribundos.
- Falas como uma poetisa. Nunca te vi por aqui... realmente poderia eu estar embriagado e não tê-la notado, o que realmente torna-se um pecado a mais para mim.
- Falas como alguém que pretende galantear uma dama. Realmente agradeço ao senhor seu préstimo em me servir comida e bebida e em comprar minhas flores, volto para casa mais cedo hoje, satisfeita.
- Pretendes ir agora? Levo-te à tua casa, se permitires.
- Não precisa incomodar-se, senhor Santiago. As ruas são meu reduto, meu universo íntimo. Somos muitos nestas vielas e becos. Os ratos nos guiam até nossos lares, pois lá também se escondem do frio e da falta de víveres. O senhor não precisa ter essa sensação desagradável... ir ate minha choupana.
- Antônia. Estou ébrio, mas posso falar algumas coisas sensatas. Em meio a estes homens e mulheres reunidos, nada se compara a você. Uma vida inteira não seria capaz de aplacar esta visão, esta verdadeira dádiva que me foi concedida. Sim, sou poeta,e os deuses não me são bem quistos, mas hoje eles apresentaram uma pequena parte de seu séquito a mim. Somente eu pude ver isto? Oh, como estou feliz!
- O senhor fala de maneira sublime, doce. Os homens com os quais me deparei estão acostumados a atitudes ríspidas, indiscretas. Não sou realmente o que o senhor acaba de dizer, sou uma mulher que sofre, e que não tem tempo para contemplações estéticas. Bem, vou indo agora, agradeço mais uma vez.
- Insisto. Deixe-me acompanhá-la até sua residência. Peço.
- Os poetas são difíceis e interessantes. Não se dobram às conveniências e aos costumes, fazem aquilo que lhes compete a mente, tratam a realidade ao seu modo, a sua maneira. Persistência e audácia são seus fiéis instintos, e não sossegam enquanto não desbravarem o contrário, o proibido. Está bem, senhor Santiago, se queres minha condescendência para vir, a tem. Pelo tempo que nós travamos ciência um do outro, não poderia emitir juízos de valor a seu respeito, mas seguramente posso adiantar que o senhor é extremamente galante e cavalheiro, alem de sensível às dores particulares.
- Agradeço esta sua análise, embora não participe de alguns pontos de vista seus, mas isto pode ser discutido no caminho, vamos?
Os dois saíram. Estavam nas imediações do Observatório tinham um longo caminho ate chegar ás palafitas localizadas na Rua da Aurora. Continuaram a dialogar, quase sempre aos risos; Santiago estava visivelmente bêbado, mas conseguia reunir forças e equilíbrio para não tropeçar, Antônia estava, vez ou outra, acudindo o rapaz. Atravessaram a ponte Buarque de Macedo e chegaram ao Campo das Princesas. Antonia achava aquela arquitetura belíssima, os palácios e o Teatro de Santa Isabel realizavam harmonicamente um agradável conjunto; queixava-se também das oportunidades não concedidas ao povo para desfrutar daqueles prazeres. Questionava Santiago o motivo de tamanha desigualdade, tamanha ojeriza ao povo por parte da elite. Não conseguia entender um mundo , criado por um único deus, que, segundo ela, depositou amor igual, sem mensurar um ou outro individuo, esta criação feita pudesse dar em tamanha disparidade , tamanha falta de sensibilidade. Era crítica, tinha um tino apurado, consciente em visualizar os problemas humanos locais. Certamente não tinha instrução acadêmica, mas relatou que gostava de ir, às vezes, para frente do gabinete português de leitura para tentar entrar e ler alguns livros. Ia com seus melhores trajes, pois sabia que ali as pessoas eram de bom trato, mas nunca foi permitida a sua entrada. Então saia pelas ruas a ler jornais velhos, ate alguns livros que encontrava pelo caminho. Santiago ia ouvindo tudo aquilo e combatendo agora os efeitos maléficos do álcool, que naquele instante o atrapalhavam em estar atento ao que aquela mulher fascinante dizia. Sentiu, mesmo neste estado, um ódio repugnante pelas oligarquias, por aqueles homens aos quais ele estava denunciando e criticando no jornal, um ódio amargo, que não era de seu feito sentir, mas que agora possuía toda uma lógica de existir. Aquela moça, tão bela, tão jovem, e milhares de outras vidas também jovens, velhas, fortes e frágeis, vidas sempre empurradas para o lodo, para o sal, para o amargor de uma existência sem oportunidades, sem revanche. Sabia que Antônia era um exemplo de negligencia, de descaso, e, num impulso momentâneo, disse:
- Antônia, gostaria de ir até minha casa, para que eu lhe mostre algo?
- Senhor Santiago...
- Prometo-lhe não lhe constranger com nada. Apenas gostaria de mostrar-lhe algo que você certamente vai se interessar bastante.
- Então sim, podemos ir. Mas não posso demorar-me muito.
- Tudo será bastante rápido. Venha.
Foram pela ponte Princesa Isabel com destino á Rua da União. Ao saber da proximidade que estavam durante todo aquele tempo, Antônia sorriu, significando como as coisas eram realmente engraçadas em relação a ela. Sua casa ficava ao final da Rua da Aurora, numa comunidade de pescadores localizada ali. Santiago, na rua da União, não sabia a existência daquela comunidade, daquele lugar onde a vida insistia em fincar solo, e prontamente resolveu, depois, ir até lá para documentar aquela realidade e mostrá-la no jornal. Chegaram enfim ao numero 33, entraram e Antonia logo percebeu do que Santiago estava falando quando a convidou para ir à sua casa.
- Nossa! Quantos livros! Também quanta bagunça, senhor Santiago... He He He . são muitos, o senhor já leu todos?
- Não, não todos. A leitura é algo que se deve tratar com parcimônia, com delicadeza. Compro todos os livros que posso e depois, aos poucos e com igual dedicação, procuro sorvê-los a cada um. São meus companheiros, já que moro sozinho aqui.
- Um exemplar do jornal O recife. O senhor gosta de lê-lo também?
- Sou um dos editores do jornal, Antônia. Vamos, sente-se.
- O senhor é um dos editores. Eu muitas vezes leio este jornal, ele é muito mais acessível aos que possuem pouco, por isso temos condições de comprá-lo. É diferenciado, possui um texto narrativo interessante, as notícias são colocadas de maneira a que se possa compreender não só o fato, sua inteireza, mas também suas causas, suas relevâncias muitas vezes obscurecidas por uma má fé jornalística, muito bom, senhor Santiago, o senhor nos presta um grande serviço.
A forma como Antonia se portava, suas imposições de voz, seu vernáculo polido, não podiam estar mais destoados da sua realidade. Santiago estava confuso, e ao mesmo tempo envergonhado de realizar maiores escrutínios com ela. Não conseguia ver qualquer conexão entre seu estilo de vida paupérrimo e sua erudição evidente. Quem era aquela mulher? Ela tocava nos livros com tamanho cuidado, tamanha paixão, não poderia ser... não que as pessoas mais humildes não estejam habilitadas a conhecimento, à sensibilidade, mas aquele caso era bastante peculiar, intrigante até. Santiago deteve-se mais um pouco enquanto Antonia folheava alguns exemplares; havia escolhido para isso Dante, Molière, Álvares de Azevedo, Kant. Não, aquela mulher era de outra origem. Este enigma o interessou ainda mais por aquela mulher deslumbrantemente bela, sagaz e , agora, misteriosa... radiante.

0 Comentários:

Postagem mais antiga Página inicial