- Eis que vem lá o Santiago – grita Augusto, que o aguardava ansioso.
- Boa noite aos senhores, disse Santiago, retirando a casaca envelhecida que possuía – o que bebem?
- Gim de amêndoas, queres? Disse ao fundo Sotero, estudante de humanidades, ator e dramaturgo.
- Sim, por favor. Diz Santiago.
- Trouxeste o artigo? Augusto o questiona.
- Sim, encontra-se comigo. Desejo que os senhores verifiquem com ânimo esta causa, algo evidente em nosso meio e que não se luta para modificar – disse Santiago metendo a mão nos bolsos para encontrar o rascunho.
- Estamos com um pequeno folhetim sendo publicado. O nosso amigo Barnabé Souto, aquele que ontem mesmo estava conosco aqui, pois bem, seu pai possui uma pequena tipografia, e ele nos permitiu a tiragem de alguns exemplares para darmos início a nossa empreitada. Mas mostra-nos o que tens – disse Sotero.
Santiago achou o papel, já todo amassado, mas legível, onde ele começou a ler:
“Daquilo que chamam escravidão – desgraça das gentes negras do Brasil”
Em todos os países latino-americanos e no Norte do continente, esta infâmia teve fim, apenas em nosso rincão não se debate seriamente este assunto. E por quê? Devemos vislumbrar que todos ao nosso redor são Repúblicas, modo de governo e sociedade bem mais próximos de um ideal fraterno e digno do que as velhas monarquias européias cheias de comichão nobre, ainda paradas nos tempos medievais mais distantes. Nossos negros, maioria absoluta da população nacional, vivem como se não existissem humanamente, suas formas são de bestas, de asnos de carga, de cadelas prontas a se sujeitar aos caprichos sádicos de seus donos, não fazem parte da paisagem brasileira, não são considerados motores do país, são animais apenas. Sua religião, mais antiga que a da Sé de Olinda ou qualquer outra que exista, é vilipendiada e considerada demoníaca, suja, assim com sua culinária, esta que abastece aos estômagos dos brancos e a todos sacia com seus sabores maravilhosos. E o que nós, ditos intelectuais, estamos a fazer por esta gente? Estamos libertos dos preconceitos religiosos abjetos de Roma, olhamos para os negros e vemos gente, bonita gente da África, que esta aqui por imposição nossa, mas segue seu caminho na nova pátria, não querida, mas necessária. O que estamos fazendo? Quem se propõe a lutar por estes? Quando haverá liberdade para estes já tão fatigados seres que não querem outra coisa a não ser viverem em paz com os seus nesta nova terra? Lutemos! Façamos todo o possível, com nossas penas e nossas vozes, clamemos e lutemos sem cessar contra os abusos ultrapassados da escravidão absurda e cruel praticada com normalidade neste recanto americano, façamos com que a vergonha imposta aos negros, nossos irmãos, possa ser dissipada, e ainda mais, que haja indenização por parte do governo a estes, pelos anos de tirania, de despotismo, de aculturação colocada, pelo seqüestro de seus corpos de seu lugar de origem, pelo seqüestro de suas almas pela teofagia cristã ávida em angariar mulas para o seu serviço, pelo chicote lançado às costas e às ancas destes infelizes, façamos isto, senhores, e atenuaremos só um pouco a dor daqueles que sustentam nosso país. À luta!
Seguiu-se do final desta retórica aplausos inflamados, não só dos amigos de Santiago, mas das mesas próximas. O artigo, mais parecido com um discurso abrasador, estava dias depois sendo publicado no recente folhetim chamado “O Hebdomadário” , que trazia colocações dos colaboradores nas áreas da literatura, do discurso, da poesia, dos melhores lugares para se tomar um bom licor e apreciar boas mulheres, de teorias filosóficas, enfim, daquilo que se pode esperar de um circulo ativo de intelectualidade. Ainda sendo ovacionado, Santiago sentou-se e bebericou seu gim, a ouvir os comentários dos presentes.
- Maravilhoso, rapaz! Digno de um libertário. - disse Augusto.
- Senhores, escrevi este artigo, que vejo agradou a todos, para que seja usado em prol desta causa, façamos o que for preciso para que todos leiam, e também se questionem a respeito - Disse Santiago. Logo virão outros bem mais expressivos, e conseguiremos aqui em Recife esbofetear a escravidão e sua gente.
- Façamos então, mas antes disso, bebamos em homenagem ao homem das letras – bradou Sotero.
- Bebamos! Diziam todos.

Capítulo I


A noite estava bastante tranqüila em Recife no dia 18 de março de 18... Era uma sexta-feira, e as pessoas amontoavam-se nas calçadas dos sobrados para sentir o aroma suave do mar, ouvir as melodias distantes dos cafés, estes afastados dos lugares pobres das ruas do centro, ou simplesmente conversar sobre o dia de abastada labuta nas casas dos senhores distintos. Prosava-se de tudo nestes momentos de breve descanso: a madame distinta, de boa família pernambucana, casada com um velhote e às voltas enroscada com um belo rapaz entregador de jornais; as contas nas quitandas dos portugueses que já iam a perder de vista, assim como o aluguel dos pensionatos que estavam pela morte. Tratava-se também de amores, estes já desgastados por tantas lutas diárias, mas sempre presentes na existência destes, aliás, podia-se apenas contar com os amores e um pouco de sorte, que muito poucas vezes aparecia por aqueles recantos sujos dos becos recifenses. Vários cortiços já começavam a mudar a paisagem do bairro; alguns achavam aquilo um absurdo inaceitável. “Pobres e sem higiene, estes moribundos nos vêm a incomodar com suas feições cadavéricas e portes de bandidos, a nos encher as calçadas e a nos pedir indulgências diárias, isto não pode continuar assim”, diziam os mais exaltados e abastados defensores de um banimento daquela gente do centro do Recife. A igreja pouco se pronunciava a respeito disto, visto que seus fiéis mais assíduos eram justamente os mais sujos e famintos. “Contentem-se com a pobreza, meus filhos, e as dádivas celestiais lhes serão mais que suficientes. O dinheiro não traz mais do que dor e desconcerto espiritual. Contentem-se, contentem-se! ”- diziam os párocos a aconselhar os miseráveis – eles mesmos alimentados até a exaustão e vestidos com boa batina de algodão português. Neste cenário, num modestíssimo quarto de pensão à Rua da União, 33, vivia um jovem estudante, envolto naquelas mesmas questões. Santiago, este era seu nome, vivia mais na rua do que neste quadrado fétido de cortiço; tinha lá alguma mobília, conseguida por intermédio de alguns camaradas. Livros, estes tomavam boa parte do espaço, estavam em toda a parte, acumulados e sempre prontos a qualquer momento, pois o dono sempre os visitava a qualquer hora do dia ou da noite. Pouquíssimas roupas, muitas delas rotas e velhas, estavam no armário com pouco cuidado. Comia muito pouco. O jovem, já devedor de muitos aluguéis, ainda não possuía renda para conquistar a dignidade de comer com regularidade, dependendo da benevolência dos conhecidos e vizinhos para se alimentar de alguns restos. Seu único ofício : escrever. Era poeta, e nesta época os poetas eram vistos como arruaceiros, beberrões e galanteadores das mulheres alheias. E tudo isto era Santiago, e tudo isto, todas as agruras pelas quais ele passava, todas a aflições materiais, eram motivadas justamente por conta desta sua propensão artística, desta sua vontade de libertar-se,da maravilhosa manifestação da juventude em suas veias, dos arroubos criativos castrados pelos círculos sociais em que vivia antes deste período de escassez. Vejamos lampejos de sua vida pregressa.
Santiago Alves de Azevedo, rapaz de seus 25 anos, nascido já naquele contexto recifense, era estudante brilhante e promissor, certamente com carreia garantida no magistério ou em algum órgão público. Sua família, de comerciantes locais, constava de hábitos dos quais Santiago abominava: seu pai, o temível Afonso Alves de Azevedo, estabelecia uma verdadeira tirania domestica em torno de sua mulher, dona Josefa Dias, e sua filha, Dominica. A clausura imposta por este rancoroso negociante era infernal e absurda; ninguém poderia visitar sua mulher e filha sem prévio consentimento do dono da casa, não eram bem-vindas, segundo ele, pois traziam da rua toda espécie de mexericos inúteis e novidades sociais que ele não tolerava. Aliás, tudo o que era novo, em qualquer aspecto, seja este social, político, religioso, era tido como desprezível e digno de repulsa pelo Sr. Afonso, católico extremamente praticante e fiel as diretrizes da Sé local e da monarquia vigente. É claro que pecava. À noite, quando suas vitimas estavam a dormir, saía pelos lugares mais impróprios a um carola freqüentar, com as damas mais infiéis aos princípios canônicos. Dava-se lá a estes prazeres tão caros a ele, e voltava em surdina do final da noite, deitava-se ao lado de sua mulher e ali, como a importuná-la, insistia em intimidades que até pouco estava a deliciar-se, mas que não pretendia deixar de degustar. Dona Josefa, esta era uma verdadeira mulher de fibra, apesar de sua pusilanimidade. Casara-se aos 15 anos, e desde então sua vida tornara-se um tormento sem fim. Abdicou de uma vida confortável na fazenda de seu pai, o comendador José Felipe Domingues, homem muito bem quisto pela elite fazendeira de vitoria de Santo Antão, pai atencioso e marido dedicado. Dona Josefa, feliz neste estado de coisas, conheceu o Sr. Afonso, melhor dizendo, a família deste, num jantar oferecido pela associação de fazendeiros locais num verão de... ; lembra-se muito bem dos modos altaneiros do marido, naquela época um rapazola, filho também de proprietários rurais não tão bem sucedidos quanto os pais dela, mas que estava, naquele evento social, garimpando boas relações com as famílias distintas e abastadas para um bom casamento de seu filho único. Emerenciana Azevedo e Paiva bastos Azevedo, seus pais, procuravam este partido ideal, com uma determinação obstinada, ate que finalmente deu-se o encontro. Arranjaram-se os detalhes e o casamento deu-se ali por aqueles tempos, indo dona Josefa sair de seu lar paterno e cair nas mãos de um homem de fortes temperamentos,dado à extravagâncias sexuais e, ao mesmo tempo e paradoxalmente, enorme senso de pudor . Ela ainda hoje recorda-se destes fatos, não com saudosismo, mas com ares de que não teve escolhas nesta vida, e que o que mais deveria fazer era resignar-se de pronto àquela situação já tão costumeira, tantas vezes vivida e tantas vezes odiada. Santiago, sempre que a via chorar pelos cantos, a alertava para que mudasse o destino de sua existência, afirmando que aquilo não era vida, que a mulher deveria estabelecer limites ao marido, que a casta suja da sociedade determinava tais atos abjetos, tudo em vão. D. Josefa não possuía forças para um levante, não naquelas circunstâncias, não mais. Falemos de Dominica. Esta, moça pacata e serena, filha mais nova do casal, era para Santiago como um bibelô, algo puro e frágil, que vivia naquela casa esdrúxula as agruras do pai e os lamentos da mãe, a contaminar-se com estas pendengas cotidianas. Havia estudado em excelentes colégios, e, assim como o irmão, tinha certo gosto pelas letras, certa iluminura para aquilo que se trata com as emoções textuais, da universalidade que a palavra proporciona ao homem. As leituras dos clássicos da época, que Santiago a incentivava a contrair, lhe davam um olhar diferente sobre a vida, aquele vislumbre do movimento que estava já estava tão arraigado nos círculos intelectuais, aquele torpor sentimental, todo o idealismo e a vontade de aventurar-se, de mudar a opinião, tudo aquilo que estava em voga passava pela alcova desta jovem que tinha, nos livros, seu estado natural, sua vida sem máculas, sem o estrago que a realidade de seu lar insistia, vez ou outra, incutir-lhe. Santiago previa algo para a irmã, ela não poderia viver “naquele antro de involução humana, onde o velho e o roto eram sacralizados, divinizados, com deuses reais”. Ele aguardava o dia em que as mulheres seriam libertas de toa ignomínia, tal desprezo, tal humilhação, seriam livres, independentes, teriam seus amores de livre vontade, escolheriam suas tragédias e alegrias, decidiriam sobre seus filhos, gerá-los ou não, seus amantes, os satisfariam ou não, enfim, aquele dia não tardaria a chegar, e certamente Dominica seria inserida neste contexto.





Santiago havia saído da Rua da União às 18:35, seguindo em direção à Avenida Rio Branco, para encontrar-se ali co alguns amigos. Estes, sempre presentes, eram o porto seguro do poeta, agüentavam os momentos de impedimento criativo, vindo em seqüência instintos de nulidade destrutiva, bebedeiras, entorpecimento artificial, insultos. Todos sabiam da genialidade do bardo, por isso, toleravam com alegria estes arroubos. Devido ao comportamento incomum de seu pai, a família havia perdido várias oportunidades de negócios, e as dividas contraídas elevavam-se demasiadamente. Santiago, que nutria pelo pai apenas desprezo e ojeriza pelos seus extremismos, havia renegado tudo aquilo em nome da liberdade que acreditava existir fora daquela prisão domiciliar, e saiu de casa resoluto a não mais voltar, a não ser que sua mãe ou irmã estivessem a passar por perigos iminentes. Livre pensador que era, recusara-se a permanecer em mesmo teto que aquele seu progenitor arcaico e maléfico, dono das piores estirpes, e que constantemente vinha importuná-lo com indagações sobre sua vida, seus costumes estudantis e suas saídas boêmias; Santiago sabia das incursões do pai aos cabarés do centro, o havia visto varias vezes a circular com as mesmas putas que, dias antes, ele mesmo, Santiago, havia se deitado, mas na espreita não o abordava, apenas o observava de longe. O pai havia prometido que não mais o ajudaria pecuniariamente, e que seus estudos seriam custeados pelo próprio Santiago, “seja lá como fosse, não darei um só tostão de meus bolsos a você, ingrato!” esbravejava o Sr. Afonso, furioso. “Não desejo nada, a não ser respirar os bons ares da rua, onde os bêbados se amontoam e as prostitutas dedicam-se a amparar as lágrimas dos desgraçados ” dizia Santiago, sem obedecer aos apelos de sua mãe para que se calasse diante do pai, e assim se deu.










continua...

Escrever sempre foi uma de minhas maiores vontades. Ao ler os grandes nomes da literatura no mundo, percebi que esta forma de comunicação era apropriada para mim, uma vez que não sou muito comunicativo pessoalmente. A forma de transmissão de sentimentos e análises sobre a vida e sobre o que nos acomete em nossa jornada pela existência proporcionada pela literatura é fantástica e emocionante; dar vida a estas sentimentalidades, experimentar formas, estéticas, trabalhar personagens e dar vida aos mesmos, tudo isso é instigante, e desde criança sempre fui inflado a seguir tais desígnios . Hoje, ao preparar meu primeiro romance, as dúvidas e incertezas são evidentes. Mas concluo com os mestres que a primeira coisa a fazer é deixar que as palavras nos capturem, nos escravizem, estar aberto aos códigos que elas nos colocam. A observação é outro ponto importante. Não há escritor que pretenda escrever algo interessante e que não se permita analisar suas cercanias, sua vizinhança, e dali retirar estes códigos textuais, com os quais a realidade se mostra em crueza. O escritor é o decifrador, o grande intérprete desta natureza léxica, que está em todos os lugares, mas acessível apenas a estes iniciados. Pretendi orientar-me por estas vertentes, e o que gostaria de apresentar neste espaço é uma tentativa sóbria de interpretação da realidade ao meu redor, onde o personagem , esteja ele nos tempos idos de Roma ou nos atuais de crise econômica, aborde sempre as propostas humanas, sua universalidade, sim , pois estamos ligados por esta universalidade sentimental, emotiva, coisa que a literatura já se consagrou em apresentar. O leitor, parte importante desta relação tríplice, a saber - escritor, texto e leitor - é o conector final, recebe estas impressões decodificadas e se nutre delas, identificando-se ou não com as abordagens transmitidas. As linguagens textuais serão diversas e frequentes neste espaço. Prosa, verso, crônicas, enfim, toda a manifestação literal poderá ter seu recanto aqui. O autor não pode se limitar a um estilo interpretativo; as palavras decidem qual a forma mais adequada de mostrarem-se, e o autor deve estar preparado e experimentado para obedecer, sempre, a estes chamados, como um profeta a ouvir atentamente a voz celestial e a traduzí-la, compartilhando com os demais as beneces divinas. Vamos em frente...

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